A, Ar, Arte… e Caça

September 03, 2019

por Chef Paulo Machado

Foi sobre o tema árvores que a artista plástica Lúcia Barbosa resolveu trabalhar uma de suas fases artísticas mais expressivas. Culminou em saudosa exposição no MARCO (Museu de Arte Contemporânea de Campo Grande), no ano de 2004. Além de uma performance, onde Lúcia dançava o tango: “por una cabeza” ao lado de um grande ipê caído e recoberto de tripas secas de boi (cada tripa tingida com cores que remetiam ao céu do Cerrado), a artista exibiu trabalhos que mostravam claramente a grandeza da influência da natureza no dia a dia da  sua criação.

Traçando um paralelo entre artes plásticas e gastronomia, posso dizer que o mesmo fenômeno acontece. Nos pratos do cerrado-pantaneiro a natureza fala mais alto. Os ingredientes estão lá, vivos. Nascem, crescem e morrem na terra fértil do centro-oeste. Tanto o animal quanto o vegetal preservam cheiro, textura e características de sabores ligados ao terroir local.

Um exemplo do uso de ingredientes da natureza vem da prática da caça, sabedoria dos primeiros povos que habitaram a região e que hoje já não é mais passado de pai para filho por ser ilegal no território brasileiro. Este é um tema muito delicado em nosso país, uma vez que a caça é um saber cultural que deveria ser preservado até mesmo para preservação de ferramenta tecnológica de conhecimento técnico e regional.

Quando as leis ambientais proibitivas surgem, há mais de 25 anos, visam a proteção de nossa fauna e flora ameaçada principalmente pelo tráfico ilegal de animais e plantas silvestres. Pertinente para uma época onde não existia política intensa para a preservação. Ocorre que, alguns destes animais já não estão mais em risco de extinção, pelo contrário, se multiplicam em super populações, que acabam trazendo sérios problemas e riscos para pessoas de certas regiões do país. É o caso de algumas espécies de jacarés, piranhas e ainda porcos selvagens que destroem lavouras e plantações de pequenos produtores pelo país.

Sem querer incentivar a caça, e sim pensar em soluções, quero deixar notado aqui o potencial gastronômico que possuem animais de caça, e que poderiam ser mantidos em equilíbrio caso pessoas devidamente autorizadas pudessem fazer uso de sua carne e couro para incrementar sua renda (caso de populações ribeirinhas e quilombolas da bacia do Rio Paraguai, regiões amazônicas e/ou de mata atlântica), e também incrementar a questão turística na região.

Estive a alguns anos na África do Sul, e descobri que alguns países do continente africano exploram economicamente a caça de animais silvestres, desde que dentro de um parque nacional e numa situação onde os animais são abatidos sem o risco de extinção. Existe lá uma movimentação turística fortíssima e uma movimentação da economia local em torno desta atividade que gera renda e lucro para uma grande gama de pessoas naquelas áreas. Esta é uma situação que poderia ser estudada e importada para algumas regiões de nosso país. Desta forma iríamos inclusive desestimular a caça ilegal, ou de animais em risco de extinção, uma forma até de tirar da ilegalidade pessoas que atualmente praticam a atividade ilícita de caçar, muitas vezes até por ignorância.

Volto a levantar a polêmica, para a gastronomia a caça é um alimento dos mais nobres, e infelizmente no Brasil é praticamente impossível comer carne de caça pois trata-se de ação ilegal. O que nos resta é cozinhar carnes de animais de caça criados em cativeiro (com as devidas permissões), que acabam modificando e perdendo valor organoléptico-gustativo, e que são tratados pelo comércio como “animais exóticos”. Alguns são mesmo trazidos de fora, mas e o que dizer da carne de paca, capivara, tatu e até mesmo macaco, animais muito apreciados por nossos pré-avós indígenas e que até hoje figura no meu imaginário quando leio Câmara Cascudo em História da Alimentação do Brasil e Antologia da Alimentação.

Como preservar a sabedoria indígena de caça e pesca para as presentes e futuras gerações? Enfim, este é um tema extremamente atual e relevante e que deveria estar nas pautas de políticas públicas e debates acadêmicos no Brasil. Afinal é mais um saber cultural que pode se extinguir.

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