Açorda à Alentejana

May 23, 2021

Por Magda Eva Soares de Faria Wehrmann – em referência à experiências na cozinha com AÇORDA à ALENTEJANA

Aos 25 anos fui aceita para fazer mestrado em Montpellier, sul da França. Fiz minhas malas e parti para a grande aventura da minha vida. Mudei-me para a França sem nunca haver estado em outro país, sequer no Paraguai – não havia conseguido juntar os trocados necessários para o grande turismo muambeiro de então.
Então fui para o outro lado do Atlântico, acima do Equador.

Quanta novidade! Um verdadeiro deslumbramento.
A cada dia uma surpresa para o paladar, sobretudo quando o que se havia experimentado da gastronomia elaborada era um Medalhão com arroz à la piemontese.
Esperava em cada esquina da cidade ser surpreendida por um super-qualquer-coisa francês, com aparência e sabor de filme de Hollywood, onde os enamorados iriam se deliciar com as maravilhas locais. Como diria Drummond: ledo engano!
E assim passava os dias: à espera do grande dia, do grande evento.

Naquele ano os ventos vindos do Saara brindaram a região do Mediterrâneo com temperaturas acima dos 40ºC, sensação nova para mim, o quê e como comer?
Ademais das novidades todas havia a parte burocrática. Um verdadeiro desafio para quem não falava o idioma: eu havia me preparado para me mudar para os EUA.
No apagar das luzes consegui ir para a Europa. A minha geração inquieta e contestadora identificava-se mais com a vida fervilhante que Daniel Cohn-Bendit nos fazia vislumbrar, naquela famosa foto de maio de 1968, onde aquele menino ruivo parecia prometer liberdade para o mundo.

A realidade significava me encontrar morrendo de fome, após horas tentando me comunicar em órgãos da burocracia da seguridade social, pedir uma salada em um restaurante barato perto da estação ferroviária e alguém me trazer algumas folhas de alface!
Mas nada como o tempo-rei para nos fazer aprender a pedir uma salada que vinha ovo cozido e um pedaço de pão; era o que cabia no orçamento. Que evolução! A bolsa de estudos era de US$ 300.00.

Passado esse primeiro momento de expectativa e deslumbramento veio a parte boa: o início das aulas. Alunos de todas as partes do planeta. Cada refeição no bandeijão era uma viagem na história e geografia de países que haviam integrado a ONU havia pouco tempo – os independentes das décadas de 1960 e 1970.
Era nesse ambiente que as relações eram construídas. Sem nenhum subterfúgio com relação a origens e raízes. É claro que a melhor maneira de mostrar nossa cultura era falarmos de nossa culinária. Éramos convidados sempre por colegas.

Um colega senegalês nos brindou com um prato que ficamos todos em estado de graça por toda semana: arroz e peixe preparado com tamarindo – foi a primeira vez que tamarindo não foi suco para mim. O arroz foi colocado em um recipiente redondo, como uma pequena montanha e o peixe, com um molho dos deuses, despejado sobre o arroz. Sentamos no chão em volta daquela mesa redonda e comemos com a mão, lembranças da infância no interior de Goiás, quando as mãos eram nossos talheres mais seguros.
Nossos finais de semana na residência universitária se desenrolavam em volta do pequeno fogão ali instalado. Eu tentava participar de tudo para assimilar o máximo de informação, sabores e aromas.

Eu passava grande parte do meu tempo livre, porque não dizer lazer, com os portugueses. Era um alívio poder me expressar na minha língua-mãe.
Aprendi com uma colega portuguesa que Espera marido é uma das sobremesas mais fáceis e rápidas de se preparar. Perdi a receita, mas acredito na minha amiga Isabel, que por acaso era a cozinheira daquele sábado à noite.

Isabel era uma privilegiada fisicamente: tinha destreza e agilidade como poucos. Eu não me desgrudava dela e tentava acompanhá-la: picava, lavava, varria e guardava.
Os nossos pratos daquele sábado tinham como base camarão e a sobremesa o famoso espera marido, feita de ovos – novidade, né? Sobremesa portuguesa feita com gema de ovo!
Isabel elogiava sem delongas aqueles camarões: ovas, cabeças, rabos, tudo perfeito.
Teríamos a melhor açorda alentejana desde Camões.

O prato com o camarão em pedaços estava com o preparo adiantado e nossa chef de plantão satisfeita com seu caldeirão, algo como uma água com resíduos de camarão, segundo a minha leitura, que ela, coitada, tinha levado horas preparando (um fundo?). Eu não entendia bem aquele apreço e elogios àquele caldeirão!
Isabel saiu; foi ao seu quarto buscar algumas das ervas que dizia necessitar e eu fiquei cuidando da cozinha. Como queria me mostrar solícita, prestativa e útil – era péssima de cozinha -, comecei a organizar e limpar tudo para esperar nossa amiga para a finalização dos pratos. Quando ela voltou a cozinha estava perfeita e o caldeirão secando de cabeça para baixo. Isabel não conseguiu falar por uns bons minutos.

E eu lá sabia que aquela “água suja” era (quase toda) a açorda alentejana!!!!????

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